domingo, 17 de julho de 2011

"O DOMINGO SANGRENTO RUSSO": um registro falso, mas que não apaga a veracidade do fato

Ilustração do episódio conhecido com Domingo Sangrento, ocorrido na Rússia em janeiro de 1905.


A Rússia em 1905 era um império extremamente desigual. A maior parte da população, e falo de cerca de 80% de uma população de aproximadamente 180 milhões de habitantes, vivia em condições difíceis, seja no trabalho pesado do campo ou na estafante jornada de trabalho operária. Além disso, consternava sobre essa mesmíssima população, um governo autocrático que suplantava os direitos naturais inerentes à cidadania. Bom... Não podemos considerar a Rússia como o único mau exemplo da época no que se refere a garantia de direitos, mas era palpável nas principais nações do mundo um avanço nesse sentido desde o século XVII a partir da Revolução Inglesa. Aos russos era vetado o direito ao voto, à manifestação ou reivindicação, também lhes era proibido qualquer forma de organização partidária, dentre outros direitos hoje considerados essenciais.
A imagem acima é facilmente encontrada nos livros didáticos da disciplina de História procurando ilustrar o episódio conhecido como “Domingo Sangrento”. Este evento nada mais foi que “o divisor de águas” na história do czarismo russo (Czar ou Tzar que em português significa imperador). Massacrados pela excessiva jornada de trabalho, uma exorbitante carga tributária, as humilhantes derrotas do exército russo e as suas conseqüências para a população no processo de tentativa de expansão do império no continente asiático, milhares de trabalhadores russos em 9 de janeiro de 1905, marcharam pacificamente em protesto com uma petição em mãos, rumo ao Palácio de Inverno, em São Petersburgo, sede do governo czarista. Nesta petição, algumas reivindicações pontuadas como a redução da carga horária de trabalho para oito horas diárias, o estabelecimento de um salário mínimo, o excesso de impostos, a eleição de uma Assembléia Constituinte sob a forma de sufrágio secreto, igual e universal. Ao final do documento referido, os trabalhadores russos ressaltam:
“Não recusai ajuda ao vosso povo. Destruí o muro que se levanta entre vós e o vosso povo.”
De frente ao Palácio de Inverno, suplicando atendimento do czar Nicolau II, os manifestantes são recebidos com disparos realizados pela polícia czarista. Repare na imagem proposta, o momento em que os oficiais czaristas (na parte de baixo) disparam contra a multidão (na parte de cima) que se dispersa em desespero. Os resultados da estúpida ação tomada pelo governo foram cerca de mil mortes e uma indignação extrema por parte da população que a partir dali, não via mais na figura do czar Nicola II, alguém que merecesse respeito ou obediência, alguém que fosse digno de governar o país. Com a insatisfação generalizada e com alguns grupos revolucionários já organizados, o governo czarista não se perpetuaria por muito tempo.
A imagem aqui proposta foi escolhida de forma proposital. Não seria pela sua simples leitura que eu dedicaria uma postagem a mesma, mas pelo fato desta fotografia esconder uma das maiores falcatruas da história. Gostaria de chamar a atenção dos amigos historiadores e curiosos, para o cuidado que se deve ter ao trabalhar uma imagem em sala de aula, ou até mesmo, nos estudos próprios, principalmente quando estas estão ligadas ao período revolucionário russo. No início da postagem eu disse que essa fotografia é comumente encontrada em livros didáticos para ilustrar o episódio conhecido como “Domingo Sangrento”, aliás, é geralmente apresentada como um registro verídico (fonte histórica primária) deste momento histórico.
Contudo, é preciso ter cautela já que a edição de imagens era uma forte ferramenta usada para a “reconstrução” da história do Josef Stalin, exaltando-o e consolidando-o como um ícone da revolução em si. Diante desta pontuação, afirmo-lhes que esta imagem do “Domingo Sangrento” é falsa, trata-se de um fotograma do filme Nove de Janeiro, dirigido por Vyacheslav Viskovsky, em 1925.
Diante deste problema, sugiro a leitura da reportagem da revista Veja, publicada em 1997, intitulada “O pai da mentira”. Para ler é só clicar aqui
Para encerrarmos, não poderia deixar vocês sem outra sugestão de imagem para se trabalhar tal temática.
O massacre do "Domingo Sangrento" por Ivan Vladimirov

Trata-se de uma pintura de Ivan Vladimirov que também retrata o massacre do “Domingo Sangrento”. Esta sim, não é falsa e dá para se trabalhar os elementos simbólicos ali contidos como, por exemplo, o clima daquele dia, a separação de dois mundos antagônicos, o do poder real e da corja aristocrática que o apoiava e o mundo dos trabalhadores que continuara por vários anos ainda a luta por melhores condições de vida.

Forte abraço e saudações históricas!


sexta-feira, 1 de julho de 2011

GUERNICA: a materialização de uma obra nazista


Exposta no "Museo de la Reina Sofia" em Madri, capital da Espanha, Guernica é a obra mais famosa de Pablo Picasso. Produzida em 1937, o artista espanhol procurou retratar em sua tela de estilo cubista, a face do horror vivenciado pela pequena cidade espanhola de Guernica (daí o nome da obra). O horror no qual mencionei, refere-se ao bombardeio da força aérea nazista, que apoiou o movimento golpista liderado pelo general Francisco Franco, durante o processo de Guerra Civil Espanhola (1936-1939).    
Às vésperas de um segundo conflito mundial, a Guerra Civil Espanhola, serviria naquele momento para os nazistas como uma espécie de laboratório, um teste, ou ainda um ensaio de guerra, onde armas e táticas militares foram devidamente colocadas a prova.
Ao tomar conhecimento da barbárie nazista realizada em Guernica, que na ocasião deixara um saldo desastroso de aproximadamente 7 mil mortos, o artista espanhol Pablo Picasso, ficou estarrecido e acabou utilizando seu pincel para retratar a dor, a agonia e o desespero das pessoas que ali estiveram. Acredito que a obra tenha atingido o seu objetivo ao retratar todo o horror e transmitir-nos de forma tão intensa uma sensação de tragédia, pois neste sentido, Guernica ganharia anos mais tarde, dimensão mundial e se tornaria um ícone da luta contra a guerra.
A obra em si está “recheada” de elementos simbólicos e convido-lhes a fazer uma viagem a este intrigante cenário pintado por Picasso. Sendo assim, partiremos da esquerda para a direita. Então, vamos lá!
No canto superior esquerdo vemos um TOURO, elemento que se faz presente em diversas obras de Picasso, o que é atribuído ao seu fascínio pelas touradas. O touro aí, muito além de ser uma mera representação cultural (touradas espanholas), ilustra a força e a resistência do povo espanhol, entretanto este animal também é lembrado pela brutalidade, relação esta, que faz muitos estudiosos atribuírem à figura deste ao general Francisco Franco. Repare como ele parece observar a cena depois de um possível ataque ao inimigo, ou até mesmo se preparando para um novo ataque.
Logo abaixo do touro, nos deparamos com uma MULHER QUE CARREGA UMA CRIANÇA DESFALECIDA NOS BRAÇOS. É forte a expressão de desespero e agonia desta mãe que acabara de perder seu(a) filho(a) no ataque aéreo nazista, muito bem ilustrado no fato da mulher está olhando para cima.
Ainda na parte esquerda da tela, logo ao chão, apresenta-se UMA PESSOA COMPLETAMENTE MUTILADA. Mesmo despedaçada, um de seus braços agarra-se a uma espada quebrada que parece está unida a uma flor, símbolo da esperança. O fato de portar uma espada, remete-nos a possibilidade de se tratar de um guerreiro e a mensagem ai contida, é a de que "mesmo destruído, ainda haverão de lutar". Além disso, a simbologia existente no item “mutilação” nos conduzirá a sensação de morte, de fracasso e/ou derrota militar. Na verdade, contrapondo-se a idéia de morte/derrota, o fato de agarrar a espada, dá vida ao personagem que através de dois elementos, espada e flor, transmite a mensagem de resistência e esperança.
No centro da tela, temos UM CAVALO AJOELHADO, aparentemente ferido, sua expressão é de dor e raiva. Voltado com a cabeça para o touro (o inimigo), o cavalo parece dar um forte rugido, simbolizando dessa forma, toda a angústia vivenciada pelo povo espanhol.
Passamos ao lado direito da obra. Na parte superior, meio que em uma janela, ou uma abertura acima, saem UM BRAÇO QUE SEGURA UM CADEEIRO E UMA CABEÇA DE UMA PESSOA BOQUIABERTA, com olhar e expressão tristes, parecendo não acreditar naquilo que presencia. O candeeiro clareia mais a cena através de uma suave luz, geralmente relacionada à luz da consciência, da razão humana, como se esta clarificasse aos olhos e a mente dos homens acerca dos horrores da guerra. Perceba que em sintonia à luz do candeeiro, o rosto boquiaberto parece entender e por meio da expressão facial (tristeza), completar a mensagem a ser transmitida em relação à condição humana num cenário de guerra.
Logo abaixo do rosto e do braço segurando o candeeiro, encontraremos uma MULHER QUE PARECE SAIR DO ESCURO, em procura da luz emanada pelo candeeiro. A sua postura, revela um esgotamento, como se ela estivesse carregando um enorme fardo nas costas. Muitos críticos associam a figura desta mulher a de Cristo carregando a cruz.
Na extrema direita da cena, há um homem com os braços erguidos, num gesto de rendição. Observe em seu rosto a expressão de medo e pânico que se une ao olhar para cima, também numa alusão ao bombardeio nazista. Este elemento em especial da cena de Guernica, também é associado ao personagem central da tela “Os fuzilamentos” dos 3 de maio de 1808 de Goya".
"Os fuzilamentos"

Por fim, no centro superior esquerdo da tela, vemos uma LÂMPADA. A forma com a qual foi desenhada nos remete a aparência de um sol, o que fica subentendido que Picasso quis retratar este elemento como o “Olho de Deus”, que observa de forma omnisciente todo o cenário desolador. Seria uma testemunha muda, mas que conhece a verdade, a verdade histórica.
Guernica possui dimensões grandiosas, não somente pelo fato de ter se tornado uma das obras mais famosas do mundo, mas no tamanho em si, possuindo cerca 3,5m x 7,76m. Isto nos faz reverenciar ainda mais a genialidade de Picasso que em apenas um mês produziu Guernica.

Guernica em exposição.
Nesta foto dá pra se ter noção do tamanho da tela pintada por Picasso.

Ainda sobre esta obra existe uma curiosidade que merece nosso destaque. Conta-se que certa feita, numa exposição em Paris, um representante do nazismo perguntou a Picasso se aquela obra o pertencia e/ou se ela era de sua autoria. E que sem titubear, Picasso respondeu: “Não, é obra de vocês!”  

E finalizando mais uma postagem, depois de um belo passeio reflexivo sobre o cenário horripilante de Guernica, gostaria de convidá-los a um fantástico passeio em 3D sobre este mesmo cenário. É só clicar e assistir:



Forte abraço e saudações históricas!