sábado, 3 de setembro de 2016

PIETÀ: o olhar humano sobre a divindade

BUONARROTTI, Michelangelo. Pietà. 1499. Roma. Basílica de São Pedro. Escultura em mármore.
Se existe um período da História da humanidade que me fascina enquanto historiador, sem dúvidas é o momento transitório da Idade Média para a Moderna. O termo transição explicita com competência as profundas mudanças nas estruturas econômicas, políticas, sociais e culturais desse período na Europa. E é justamente buscando uma espécie de regozijo pessoal, que trago para esta postagem uma das mais belas expressões do movimento renascentista Europeu, a Pietà.
Feita em mármore, a nobre escultura do florentino Michelangelo Buonarrotti expressa com magnitude o olhar do ser humano inerente a uma época, a renascença. Feitas as primeiras considerações, vamos analisar esta espetacular obra prima da arte sacra, feita por um “homem” de maneira “divina”.
Para início de conversa podemos dizer que Pietà (palavra italiana que significa Piedade) é uma representação, ou melhor, a materialização do imaginário bíblico que nos remete a cena em que Maria, a mãe de Jesus Cristo, está com  seu filho no colo, desfalecido, morto, depois da dolorosa crucifixão. Mas você pode está se perguntando, qual a relação entre o Renascimento e essa obra, uma vez que o teocentrismo é um aspecto predominante da Idade Média e a cena retratada é composta de personagens bíblicos? Então vamos a resposta, pois de fato as personagens esculpidas e a cena em si são bíblicas, mas são representados única e exclusivamente como seres humanos. Não há nada na cena que nos remeta a ideia de sagrado, de divindade, como por exemplo, uma auréola, um anjo, elementos típicos das artes medievais, dessa forma, o Antropocentrismo é predominante nas personagens e cena criada.
Salta aos olhos a valorização dos aspectos humanos e de tudo o que reveste a humanidade de Jesus e Maria na obra. Repare bem nos detalhes, o corpo de Jesus é minuciosamente esculpido (músculos, ossos como costelas, tornozelos e joelhos, a feição desfalecida, no entanto serena que não nos remete aos momentos doloridos sofridos na Paixão – inspiração no padrão corporal greco romano). Observe bem a Maria, os detalhes da sua veste foram minuciosamente esculpidos dando um realismo fenomenal a obra, outro aspecto é a feição da mãe de Jesus, que transmite um misto de tristeza e serenidade e não de desespero como muitos fiéis imaginam que tenha ocorrido naquele momento. A expressão desesperada não caberia aqui, a final de contas, Maria é uma das Colunas da Fé Católica, Maria é sinônimo de mulher de coração forte e temente, porém confiante a Deus e isto fora demonstrado no momento em que o anjo revela a ela a concepção de Jesus e agora depois do Cristo morto.
Além de todo caráter Antropocêntrico podemos destacar o valor do individualismo (outra característica renascentista) na obra, a ideia de que a mesma não pretende ser fiel ao relato bíblico, mas expressa a visão do autor sobre o episódio e mais do que isso, podemos afirmar que Michelangelo busca um reconhecimento pessoal ao deixar impregnado na obra sua técnica apuradíssima de trabalho, seu estilo de esculpir e faz questão de eternizar a autoria da Pietà, assinando-a.
Tudo que explicitamos aqui, seria o suficiente para classificarmos Michelangelo como gênio, como aquele que estava muito além do seu tempo, mas não bastasse o que já observamos, há um último aspecto que eu gostaria de destacar, que é a desproporcionalidade do corpo de Jesus em relação ao de Maria, sua mãe. Perceba que embora a cena seja constituída de dois personagens, nós tendemos constantemente a observar os detalhes de cada um deles de maneira separada, ora se contempla o Cristo, ora se contempla Maria, a sua mãe, e isso nos faz em muitos momentos cometer o erro de não se observar o todo. Sendo assim, deixemos a insensibilidade do olhar de lado e passemos a perceber que o corpo de Cristo está em tamanho menor revelando-os a ideia de que Michelangelo procurou destacar a Maria e sua grandiosidade, isso fica evidente também por meio do título dado a escultura, a Pietà.

Depois desta análise, gostaria de convidar a você para um olhar mais detalhado e por diversos ângulos da Pietà:


“Em cada bloco de mármore vejo uma estátua; vejo-a tão claramente como se estivesse na minha frente, moldada e perfeita na pose e no efeito. Tenho apenas de desbastar as paredes brutas que aprisionam a adorável aparição para revelá-la a outros olhos como os meus já a vêem.” (Michelangelo Buonarrotti)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Revolução Bolchevique: varrendo as velhas estruturas

Cartaz produzido pelo cartunista russo Viktor Nikolaevich Denisov, em 1920

Em outubro de 1917, a Rússia estava mergulhada em uma profunda crise que perpassava pelas estruturas política, econômica, social e cultural. A velha estrutura alicerçada no Czarismo tinha “caído por terra” desde a Revolução Menchevique em fevereiro daquele mesmo ano. De Nicolau II, último dos czares, para Alexander Kerenski, líder revolucionário Menchevique que assumiu o poder provisoriamente, ocorreram algumas significativas mudanças no âmbito político, dentre elas, a anistia aos exilados. O que parecia uma medida de modernização e abertura política se transformaria em um enorme problema para o governo de Kerenski, pois entre os exilados estava Vladimir Illitch Ulianov, mais conhecido como Lenin.
Líder do partido Bolchevique, profundo conhecedor da doutrina marxista, Lenin pregava uma revolução comunista radical. Segundo ele os problemas do povo russo só seriam resolvidos se o atual governo fosse derrubado, o comunismo implantado e se as forças militares russas fossem retiradas da Primeira Guerra Mundial. Sendo assim, o líder Bolchevique encontrou na sofrida população, sofrimento este oriundo em inúmeras questões, dentre elas a penúria da participação na Primeira Guerra Mundial e na insatisfação com as moderadas mudanças e reformas feitas pelo governo Menchevique, um terreno fértil para um discurso ainda mais radicalizado e/ou exaltado. Inflamados pelas Teses de Abril, que tinha como lema “Paz, Terra e Pão”, o povo russo encontrara a motivação necessária para um novo levante, uma nova revolução, esta sim, na visão dos bolcheviques, capaz de acabar com a opressão capitalista imposta ao povo russo, com o fim da exploração sobre o proletariado e os camponeses, o término das injustiças latifundiárias e de um modo geral do abismo social existente.
Ao assumir o poder da Rússia cabia a Lenin colocar em prática todo seu discurso e assim começou a ser feito, o socialismo começou a ser implantado por meio do confisco e estatização das terras dos grandes latifundiários, dos bancos, da marinha mercante, da indústria, etc. É justamente nesta fase de implementação do socialismo na Rússia que a imagem acima, selecionada para esta postagem, tem relação. Produzida em 1920, pelo cartunista russo Viktor Nikolaevich Denisov (1893-1946), a imagem demonstra bem seu posicionamento favorável ao líder e à política Bolchevique. Sendo assim, vamos à leitura da respectiva cena produzida.
Primeiro aspecto a ser observado é o fato de que Lenin está sobre o globo terrestre (mundo) com uma grande vassoura (ideologia comunista) que varre toda a velha estrutura política, econômica, social e cultural que alicerçava o sistema Czarista e o próprio capitalismo russo. O fato de está acima do globo e representado em tamanho maior que os demais da cena, pode conotar a ideia de superioridade, de liderança ou até mesmo de disseminador de ideias. Não podemos deixar de citar as personagens varridas na cena, que de cima para baixo, representam os Czares, o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa e um burguês, mais precisamente um banqueiro, o que torna-se evidente através da análise das vestimentas de cada um deles. Outro detalhe na cena a ser percebido é o fato de todos os varridos serem “gordos”, o que nos reporta a ideia de “vida boa”, de abundância, de riqueza e/ou de fartura que estes viviam, lógico, tudo isso às custas da exploração do povo russo.

Na parte de baixo do cartaz, lê-se em russo “Camarada Lenin limpa o mundo do lixo capitalista”, mensagem de conteúdo ideológico fortíssimo que mostra o socialismo como força benigna de salvação da humanidade e o capitalismo como a força maligna, fonte de todo mal político, social e econômico. Dali em diante, muitas coisas aconteceriam no doloroso processo de consolidação do socialismo na Rússia que em 1922, ainda sobre o comando de Lenin se tornaria a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e mudaria a partir daquele instante o curso da História.


segunda-feira, 27 de junho de 2016

O CAFÉ COM LEITE DA VELHA POLÍTICA BRASILEIRA

Capa da Revista CARETA, publicada em 27 de agosto de 1925
Em 1925 o cenário político brasileiro estava bastante aquecido, pois desde a sua implantação em 1889, a República Federativa dos Estados Unidos do Brasil enfrentara uma série de problemas de ordem econômica, política e social. Com certeza nas inúmeras discussões ocorridas em 25, o conchavo político entre paulistas e mineiros, ocupavam lugar especial e a prova disso é a charge presente na Revista Careta publicada no dia 27 de agosto daquele ano.
Produzida pelo caricaturista Storni, a charge acima, tornou-se “figurinha carimbada” em muitos livros didáticos de História (Ens. Fundamental e Médio) e em muitos slides de professores, quando o assunto abordado é a conhecida Política Café com Leite, período de domínio político das oligarquias dos Estados de São Paulo e Minas Gerais que detiveram juntas, mais da metade dos presidentes da República Velha (1889-1930). Contudo passemos a observação mais atentada da charge:

Aspecto 1 – A POLTRONA PRESIDENCIAL ocupa o lugar mais alto e central da cena fazendo uma alusão ao poder máximo, o de chefe da nação, o cargo de presidente da República. O acento presidencial está sobre um monte que lembra o Pão de Açúcar, permitindo-nos fazer uma relação com o Rio de Janeiro, a capital do Brasil naquela época. Repare também que no encosto na mesma está escrito “Presidência da República”, o que facilita nossa compreensão.

Aspecto 2 – DOIS FAZENDEIROS, se preferir, CORONÉIS estão distribuídos de maneira a nos dar a sensação de que são donos, vigias e/ou guardiões da poltrona presidencial. Estes dois personagens, assim como insinuam os escritos em seus respectivos chapéus, representam os Estados de São Paulo e Minas Gerais. Na cena os dois coronéis protegem o acento evitando que os demais (parte baixo) cheguem até a mesma, numa representação perfeita da política Café com Leite, que através de acordos políticos cuidavam para que candidatos à presidência pelo PRP (Partido Republicano Paulista) e PRM (Partido Republicano Mineiro), fossem eleitos sucessivamente. Na verdade o sucesso desta aliança estava pautado em dois fatores, o primeiro consistia no fato de São Paulo e Minas possuírem os maiores colégios eleitorais do Brasil, ou seja, juntos detinham uma quantidade de eleitores com potencial para praticamente decidir o processo eleitoral, já o segundo fator, residia nas respectivas economias, São Paulo era o maior produtor de café do Brasil, Minas o segundo maior produtor de café e tradicionalmente, um grande produtor de leite, no qual deu origem ao nome deste “acordão político”.   Existem outras versões para o nome Café com Leite, mas isto é secundário, uma vez que devemos reconhecer o êxito desta política para ambos os Estados, fruto de uma combinação perfeita.  Procurando ilustrar esse domínio, segue a lista dos presidentes paulistas e mineiros durante a Primeira República: 1894 – 1898: Prudente de Morais (Paulista) / 1898 – 1902: Campos Sales (Paulista) / 1902 – 1906: Rodrigues Alves (Paulista) / 1906 – 1909: Afonso Pena (Mineiro) / 1914 – 1918: Wenceslau Brás (Mineiro) / 1918 – 1919: Delfim Moreira (Mineiro) / 1922 – 1926: Arthur Bernardes (Mineiro). (Confira a lista completa aqui)

Aspecto 3 – NA PARTE INFERIOR do monte, percebe-se um grande número de CORONÉIS que procuram alcançar a poltrona presidencial, mas o esforço é em vão. Estes coronéis representam os demais estados do Brasil (escritos nos chapéus) que não conseguiam chegar ao cargo da presidência, fazendo praticamente do Brasil, uma República de hegemonia bipartidária, o que nos remete, de maneira até um pouco grosseira, a uma coincidência com a nação inspiradora do primeiro modelo de República do Brasil, os Estados Unidos (hegemonia dos partidos Democratas e Republicanos).

Aspecto 4 – Para complementar a cena que fala por si só, há uma legenda com o seguinte dizer: A FORMA DEMOCRÁTICA – Os detentores: tenham paciência, mais aqui não sobe mais ninguém! Este detalhe destacado, nos remete não somente ao domínio paulista e mineiro sobre a política e a economia do Brasil daquele período, mas a um sistema republicano manco, falho ou como preferem os historiadores, velho, incapaz de atender aos interesses políticos e sociais dos demais Estados da federação.

Aspecto 5 – Cabe ainda registrar mais um último detalhe, este importantíssimo, A AUSÊNCIA DO POVO. Ora se a palavra República, significa “coisa do povo”, aonde está a população? Qual era o seu papel diante dessa configuração política? A República foi implantada através do discurso de que todo homem se tornaria cidadão, mas na prática, condições foram impostas aos votantes, como por exemplo, ser alfabetizado, excluindo uma grande quantidade de pessoas da possibilidade do exercício direto da cidadania. Os poucos que conseguiram o direito do voto eram fisgados pela rede dos viciados conchavos do sistema político brasileiro alimentados pela Política dos Governadores e do Coronelismo. Dessa forma, o que sai da urna não é nem de longe, o resultado do interesse popular, mas das oligarquias dominantes que se perpetuavam no poder.



terça-feira, 7 de junho de 2016

TIRADENTES: A CONSTRUÇÃO DE PEDRO AMÉRICO

Tiradentes esquartejado. Óleo sobre tela de Pedro Américo, 1893

Aos 20 dias do mês de abril do ano de 1792, no Rio de Janeiro, capital da América portuguesa, eram publicadas as condenações a respeito dos inconfidentes mineiros. Uma delas em especial merece relevância, a de Tiradentes, como podemos observar a seguir:

(...) condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, (...) a que (...) seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada à Vila Rica, aonde no lugar mais público dela será pregada em um poste alto até que o tempo a consuma; o seu corpo será dividido em quatro quartos e pregado em postes pelo caminho de Minas (...) aonde o réu teve as suas infames práticas (...) até que o tempo também os consuma. Declaram ao réu infame, e infame seus filhos e netos.
Autos da devassa da Inconfidência Mineira, citado por Silvia H. Lara. Em: Obra citada. p. 19

A condenação de Tiradentes produziu um dos mais famosos episódios da nossa História e uma das mais icônicas imagens, “TIRADENTES ESQUARTEJADO” produzida pelo pintor paraibano Pedro Américo (1843-1905), no ano de 1893. Dada a relevância da obra, presente em praticamente todos os livros didáticos, passaremos então a analisar seus detalhes e a simbologia que há por trás da cena criada:
O primeiro fator que nos chama a atenção é que o autor fez questão de manter as partes do corpo do condenado Tiradentes, reunidas em uma mesma cena. Percebam que a disposição de suas partes, nos faz lembrar do formato do mapa do Brasil, nos inclinando a associar a cena à História do Brasil, ou justificando à causa do “mártir” como nacional. Na verdade sabemos que a luta de Tiradentes foi regional, o que nos leva a afirmar que a cena não passa de uma construção ideológica, uma vez que as partes teriam sido espalhadas como foi explanada no trecho acima referente à condenação do inconfidente. O segundo ponto a observar é a aparência do condenado com Jesus Cristo, o Salvador, aquele quem lutou pela Liberdade dos pecadores contra a opressão do mal, ou seja, a causa do inconfidente também era a Liberdade, sua luta era contra a tirania opressora da Coroa portuguesa. Percebam que a forca não tem um destaque na cena, o que sobressai é o crucifixo ao lado da cabeça de Tiradentes, a sua presença é um dos fatores que nos permite fazer a associação agora relatada. Outro aspecto é o fato de Tiradentes está cabeludo e barbudo, não entrarei aqui na discussão da imagem real do mesmo, o que temos que levar em consideração é o fato de que tradicionalmente os prisioneiros e condenados à forca eram conduzidos à mesma, vestidos em um “camisolão” branco e com cabelos e barbas devidamente raspados.
O braço desfalecido de Tiradentes faz alusão ao braço desfalecido de Marat, líder revolucionário francês assassinado em 1793 e que também teve a sua morte pintada, construída, pelo pintor neoclassicista francês Jacques Louis David. Observe abaixo a tela citada “A morte de Marat”.

A morte de Marat. Óleo sobre tela de Jacques-Louis David, 1793.
Você deve está se perguntando, qual seria a relação entre a Revolução Francesa (1789) e a Inconfidência Mineira (1789)? Grosseiramente, eu diria que na prática não há relação direta, mas aqui precisamos nos atentar para o período em que a obra “Tiradentes esquartejado” foi pintada, 1893, são pouco mais de cem anos que separam a execução do inconfidente mineiro e a construção da cena que analisamos. Em 1893, o Brasil não era mais uma nação monárquica, mas uma República, recentemente implantada pelo exército brasileiro e este processo de implantação, bebeu aos largos goles do positivismo francês e de alguns princípios norteadores da revolução francesa. Sendo assim, é inegável a carga cultural que Pedro Américo sofrera deste contexto histórico transferindo-a para sua obra.
No início do período republicano (1889-1930) o governo brasileiro procurava se desfazer de tudo aquilo que remetia ao passado monárquico, era hora de ter seus próprios heróis em detrimento das figuras portuguesas que predominaram até então na história política do Brasil (Pedro Álvares Cabral, Tomé de Souza, D. João VI, D. Pedro I, etc.). Tiradentes, por ser militar, por morar na importante região das Minas e dentre outros fatores, foi especialmente pinçado da História, saindo da condição de vilão, traidor, condenado ao esquecimento, para se tornar uma das principais figuras da nossa história. Sua imagem construída foi amplamente divulgada construindo no imaginário popular a figura mítica de um herói nacional merecedor de constantes homenagens como nome de cidade, de ruas, feriado nacional 21 de Abril, o seu rosto está gravado no anverso, popularmente conhecido como “coroa” da moeda de 5 centavos e demais exaltações.

Grande abraço e até a próxima postagem!